quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

férias de verão

ano após ano eu ouvi
as mesmas palavras
que saíam das mesmas bocas
nos mesmos filmes
sempre repetidos na sessão da tarde

primeiro demorei a entender:
não conhecia as estações
não conhecia os hemisférios

depois entendi mas faltava:
na minha rua não tinha colônia de férias
na minha vila não tinha banquinha de limonada

cresci numa lacuna
que cresceu em mim

cresci
sem casa na árvore
sem amigo imaginário
sem escoteiros
sem lago de sanguessugas

tampouco tive venda
doce da vó
história no colo do vô

meu avô fumava um plaza
que eu mesma comprava na esquina
com uma nota de um real que hoje
nem existe nem paga um só
dos cigarros que eu fumo

minha avó era intocável:
quase nunca me encostava
se por acaso me tocava
era para me afastar
e falar que eu não era
a neta que ela mais gostava

nunca brinquei de pique na rua
minha melhor amiga mudou de bairro
e hoje não passa de uma estranha

cresci
sem um ponto fixo
sem uma pessoa fixa
sem uma casa fixa
nem um cachorro fixo eu tive

nunca fui igual às meninas dos filmes
nunca entendi por que eles jantavam às 6
nunca aceitei que as casas não tivessem grades
nunca fui à praia com a família
nunca fui ao campo com a família
nunca fui em lugar nenhum com a família

mas sempre esperei que uma hora
de repente
tudo acontecesse

5 comentários:

Darlan disse...

E se nada foi assim, se não teve, talvez seja porque não mesmo te pertencia. A questão é descobrir o que é de sua natureza e conquistar o que é seu.


;*

Pamella Oliveira disse...

Se tivesse o poema não seria tão lindo *-*. Adorei :).

Anna Duzzi disse...

Achei esse bem Drummondiano.
Me fez lacrimejar. O poema, a lua, o conhaque, a senhorita.

Mas concordo com a Pam, a falta disso tudo faz dos teus escritos os mais lindos.

(L)

Danilo Lovisi disse...

Quando comecei a ler surgiu a imagem de um fim de tarde numa rua sem saída, e a narração era o poema. Fui levado por uma instantânea nostalgia até a minha infância onde, de fato, eu não tinha casa na árvore, amigo imaginário, escoteiros ou lago de sanguessugas (que confesso ter medo e uma enorme curiosidade de entrar até hoje).

Muito bonito, Larissa. E isso confirma uma ideia que eu tenho de que que memórias, na literatura ou fora dela, são e serão sempre originais, inéditas e cativantes.

Besos.

Laura Assis disse...

"Vim, como todo mundo,
do quarto escuro da infância,
mundo de coisas e de ânsias indecifráveis,
de só desejo e repulsa."

Não posso com poema/livro de infância/juventude, acho lindo demais.
Por isso adoro esse poema do Paulo Henriques Britto que coloquei um trecho aí em cima. Por isso adoro o "Mãos de cavalo". Por isso adorei o seu poema :)